Os guaikurus por Darcy Ribeiro

Jean-Baptiste Debret (1768/ 1848): carga da cavalaria Guaikuru [1822]

Extraído de O povo brasileiro — a formação e o sentido do Brasil. 1995

[...] Muitos outros povos indígenas tiveram papel na formação do povo brasileiro. Alguns deles como escravos preferenciais, por sua familiaridade com a tecnologia dos paulistas antigos, como os Paresi. Outros, como inimigos irreconciliáveis, imprestáveis para escravos porque seu sistema adaptativo contrastava demais com o dos povos Tupi.[...]. O contraste maior se registrou entre aquele povo mameluco, que se fazia brasileiro, e um contendor realmente capaz de ameaçá-lo, que eram os Guaikuru, também chamados de índios cavaleiros. Adotando o cavalo, que para os outros índios era apenas uma caça nova que se multiplicava nos campos, eles se reestruturaram como chefaturas pastoris que enfrentaram vigorosamente o invasor, infringindo-lhes derrotas e perdas que chegaram a ameaçar a expansão européia. Um dos cronistas da expansão civilizatória sobre seus territórios nos diz, claramente, que “pouco faltou para que exterminassem todos os espanhóis do Paraguai”[1]. 

Francisco Rodrigues do Prado [2], membro da Comissão de Limites da América hispânica e da portuguesa, avaliou em 4 mil o número de paulistas mortos por eles ao longo das vias de comunicação com Cuiabá. Esses índios Guaikuru estavam como que propensos para essa via evolutiva. Primeiro, por sua própria constituição física, que maravilhou a quantos europeus os observavam na plenitude do seu desempenho. Eles são descritos como guerreiros agigantados, muitíssimo bem proporcionados, que, nos diz, “duvido que haja na Europa povo algum que, em tantos e tantos, possa comparar-se com estes bárbaros” [3]. 

Sanchez Labrador [4], o jesuíta espanhol que os doutrinou por longos anos, falando embora de índios encolhidos debaixo de peles para fugir das frialdades impiedosas que às vezes caem sobre aquelas regiões, nos diz que “não há imagem mais expressiva de um Hércules pintado”. Ainda mais explicativo do seu desempenho é o fato de que, antes da chegada do europeu, os Guaikuru já impunham sua suserania sobre povos agrícolas, forçando-os a suprir-lhes de alimentos e servos. Testemunhos datados dos primeiros anos do século XVI nos falam deles como povos sagazes que dominavam os Guaná, impondo-lhes relações que ele compara com o senhorio dos tártaros sobre os seus vassalos. Os Mbayá-Guaikuru se tornaram ainda mais perigosos quando se aliaram aos Payaguá-Guaikuru, índios de corso que lutavam com seus remos transformados em lanças de duas pontas, que dizimaram várias monções paulistas que desciam de Vila Bela, no alto Mato Grosso, carregados de ouro. [...] 

A propensão de Herrenvolk dos Guaikuru, armada com o poderio da cavalaria, desabrochou, permitindo sua ascensão da tribalidade indiferenciada às chefaturas pastoris, capacitadas a impor cativeiro aos servos que incorporavam a seus cacicados e suserania a numerosas tribos agrícolas [5]. Para os íberos, que disputavam o domínio daqueles vastíssimos sertões ricos em ouro, nada podia ser melhor que alcançar a aliança dos Guaikuru para lançá-los contra seu adversário. Isso, ambos, a cada tempo, o conseguiram. Mais longamente os espanhóis, duplamente excitados para essa aliança, porque, no seu caso, à competição se somava a cobiça. 

É que os Guaikuru aprenderam rapidamente a praticar o escambo, preando escravos negros e também senhores e senhoras europeus e muitíssimos mamelucos, tantos quantos pudessem, para vender em Assunção. Ao descrever essas alianças, Sérgio Buarque de Holanda se eriça: “É o confronto de duas humanidades diversas, tão heterogêneas, tão verdadeiramente ignorantes, agora sim, uma da outra, que não deixa de impor-se entre elas uma intolerância mortal.”[6] Os Guaikuru estiveram, alternativamente, aliados com espanhóis e lusitanos, sem guardar fidelidade a nenhum deles, mesmo porque não aceitaram jamais nenhuma dominação. Aliciados e doutrinados por jesuítas, cuja missão acolheram em seus toldos, se lançaram contra os portugueses, atacando Cuiabá e Vila Bela. Expulsos os jesuítas, se voltaram mais decididamente contra os castelhanos, atacando as cercanias de Assunção. 

Os Mbayá acabaram se fixando no sul de Mato Grosso que, em grande parte graças a essa aliança, ficou com o Brasil; e os Payaguá, nas vizinhanças de Assunção. A Guerra do Paraguai deu, a uns e outros, suas últimas chances de gloria, assaltando e saqueando populações paraguaias e brasileiras. Terminaram, por fim, despojados de seus rebanhos de gado e de suas cavalarias, debilitados pelas pestes brancas e escorchados. Sem embargo, guardaram até o fim, e ainda guardam, sua soberba, na forma de uma identificação orgulhosa consigo mesmos que os contrasta, vigorosamente, com os demais índios, como pude testemunhar nos anos em que convivi nas suas aldeias, por volta de 1947. [...]

Notas

[1] Felix de Azara, apud Sérgio Buarque de Holanda, O extremo oeste. S. Paulo: Brasiliense, 1986.

[2] Francisco Rodrigues do Prado, “História dos índios Cavalleiros ou da nação Guaykurú” in Revista do IHGB, vol. 1. Rio de Janeiro, pp. 25-27.

[3] Felix de Azara, idem, ibidem.

[4] José Sanchez Labrador, El Paraguai católico. Buenos Aires, 1910/1917.

[5] “Nos campos abertos, um ataque de cavalaria Guaykuru era o desastre mais temido pelos bandeirantes. Montando sem sela, agarrando-se à crina do animal, o corpo inclinado para o lado a fim de não constituir alvo fácil, os índios cavaleiros avançam em formação cerrada, munidos de boleadora e lança. Por isso mesmo, as tribos indígenas agricultoras, mais indefesas, passaram a aceitar a proteção de grupos eqüestres, cuja grande mobilidade lhes permitia, além disso, intermediar o escambo de produtos entre os europeus e os indígenas, e entre culturas indígenas diferentes.” Silvia M. Schmuziger Carvalho, “Chaco: encruzilhada de povos e melting pot cultural” in Manuela C. da Cunha (org.), História dos Índios do Brasil. S. Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura de S. Paulo/Fapesp, 1998, p. 467.

[6] Sérgio Buarque de Holanda, O extremo oeste. S. Paulo: Brasiliense, 1986.